Entre tantos textos, podcasts e comentários sobre o Onboarding de clientes com que tive contato este ano, uma comparação chamou minha atenção: a adoção do produto de forma tão rotineira quanto a escovação dos dentes.
Percebi ser esta a hora de trazer ao blog os estudos sobre estratégias de adoção que venho fazendo ao longo dos últimos anos, usando como base este hábito comum a todos nós.
Hábito comum… Será?
Esta escolha não é à toa. Apesar do uso da escova de dentes parecer trivial, uma pesquisa do IBGE apontou que apenas 53% da população brasileira usava creme dental, escova e fio dental em 2015. A mesma pesquisa ainda apontou que apenas cerca de 46% trocavam de escova em até 3 meses, o que é tido como uma boa prática para a saúde bucal.
Aprofundando um pouco mais minha pesquisa nada acadêmica sobre a escovação dos dentes, encontrei informações sobre:
- a frequência ideal de escovação;
- a forma correta de escovar os dentes;
- a jornada do usuário e seus ciclos;
- a introdução da escovação na rotina das crianças (alguém lembrou de Onboarding?); e
- os problemas com o excesso do uso.
Passarei a detalhar cada um destes aspectos a seguir, como forma de discutirmos a criação de uma estratégia de adoção de sucesso, seja para uma escova de dentes ou um software de gestão.
Casos de Uso, antes de tudo!
Mas antes de analisarmos cada um dos aspectos que compõem uma boa estratégia de adoção, me vejo obrigado a destacar a necessidade de um conhecimento concreto do problema que estamos tentando resolver.
Esta, para mim, ainda parece ser a questão que separa as boas estratégias de retenção das estratégias ruins: afinal, estamos propondo estratégias levando em consideração o caso de uso específico de nossos clientes? Nossas decisões são tomadas com base no problema que os clientes tentam resolver, com os recursos de que dispõem,considerando um posicionamento estratégico de nossas empresas?
Neste texto, analiso o uso mais comum da escova de dentes: a escovação para uma boa saúde bucal.
Imaginem no entanto insistirmos para que nossos clientes usem diariamente a escova quando o que realmente desejam é polir artigos de prata uma vez ao ano; ou alinhar os cílios com rímel para ocasiões semanais… sim, encontrei este uso também…
A Frequência Ideal de Uso
Não existirá uma boa estratégia de adoção sem uma percepção fiel sobre o problema que nossos clientes estão tentando resolver.
Em alguns casos, eles nem ao menos se dão conta da solução; em outros, nem estamos tratando algo tão urgente assim, mas devemos olhar o Onboarding como a criação de um hábito de uso que resolve um problema; e que, para resolvê-lo, exige uma frequência ideal de uso.
As placas bacterianas, dizem os especialistas, demoram cerca de 24h para se formarem em nossas bocas. Logo, escovar os dentes duas vezes ao dia nos protege de doenças derivadas da falta de higiene bucal.
Quem deseja emagrecer e adere a uma academia, é estimulado a frequentá-la 3 vezes por semana, no mínimo. Já quem deseja aumentar a massa muscular para um campeonato de halterofilismo (outro caso de uso), deverá dedicar à academia um uso mais regular.
Já um comprimido para a cura de determinada doença ou infecção pode ter como frequência ideal intervalos de 8h (3 vezes ao dia) ou um uso semanal, por exemplo.
Em resumo, seja a urgência da solução alta, caso em que trataremos com remédios; seja ela média, na medida da prevenção, em que tomamos vitaminas ou cuidamos da higiene; ou ainda nos casos de baixa urgência, como o consumo de doces ou postagem em plataformas sociais, devemos partir sempre do fim, do resultado desejado, para definirmos as etapas necessárias para alcançá-lo.
Caso contrário, a estratégia de adoção a ser criada correrá o risco de não impactar a retenção de clientes como esperado, seja pela falta de alinhamento com o caso de uso em questão, seja por focar ações que não levam a um hábito de uso e portanto não trazem o produto à rotina do usuário.
Jornada do usuário e Onboarding… do bebê
De volta ao nosso caso de uso: partindo do desejo de criarmos o hábito da escovação para prevenção, dizem os especialistas que, desde o nascimento dos bebês, os pais já podem iniciar a higienização bucal, usando uma gaze ou fralda umedecida para a remoção do leite, principalmente em casos em que o bebê tem sua alimentação complementada com farinhas.
Diretamente atrelada à alimentação e ao desenvolvimento dos dentes, a adoção da escova deve se iniciar com o nascimento dos primeiros dentinhos, ainda com a ajuda dos responsáveis, até cerca dos 10 anos, quando a criança já segue sua rotina diária de escovação sozinha.
Este processo que culmina na adoção de um produto é o que encaramos como Onboarding do usuário, ou seja, um processo que se inicia antes mesmo de seu uso em si, passa por uma fase de educação, instrumentação assistida, para então concentrar-se na criação do hábito de uso que resolve o problema inicial.
Sem partirmos do problema para a construção do Onboarding, é bem provável que a estratégia de adoção utilizada conte com desalinhamentos entre a necessidade do cliente e aquilo que oferecemos, criando muitos atritos até o abandono do produto.
De nosso caso de uso exploratório, vale destacar ainda que no início do processo, a criança não tem total conhecimento dos motivos da escovação dos dentes e, ainda que possamos educá-la neste sentido, podemos facilitar a adoção sem necessariamente tornar a atividade algo chato e impositivo, explicando o que são doenças derivadas da falta de higiene bucal, etc. Ao invés disso, o que os educadores vêm usando são brincadeiras e histórias com fantoches, por exemplo.
Por que digo isso? Para destacar que, quando falamos em Onboarding, o novo hábito que desejamos criar competirá com todos os outros hábitos já formados e com as demais tarefas que fazem parte do dia-a-dia, das crianças e de nossos clientes.
Os Marcos da Jornada
Como em uma competição de distância ou como se tratássemos de uma lista de afazeres, existirão marcos a serem alcançados ao longo do percurso para a garantia da construção do hábito como desejado. Chamo aqui de um marco o que muitos chamam de um AHA Moment, ou seja, um momento anterior à criação do hábito em que o cliente percebe o valor do uso do produto para si.
No caso das crianças, pode ser o sentimento de ter dominado a sua primeira escovinha de cerdas macias e a percepção de amadurecimento trazida, ou o gostinho recompensador da pasta de dentes dos bichinhos, de que lembramos até hoje (eu sei que você se lembra rs).
Já no caso do novo adepto à academia, ter em mãos um planejamento de treino com o primeiro dia completo pode ser o momento em que pela primeira vez se experimenta o sentimento de “AHA! Estou no caminho certo!”
Estes marcos guardam relação com a adoção e devem ser parte integrante de uma boa estratégia, à medida que sinalizam qual o caminho mais saudável, aquele com maior probabilidade de sucesso, aquele que devemos incentivar.
Do lado contrário, podem ser observados comportamentos que devem ser desincentivados, considerando não só os desafios para a criação do hábito de uso, como também para a solução do problema em si. São exemplos: a criança comendo pasta de dentes escondida dos responsáveis e a escovação com água e sal, que pode afetar a saúde bucal.
Os Estágios e Ciclos da Jornada
Observando o usuário ao longo de sua jornada, podemos acompanhar estágios ao longo desta caminhada; e ciclos sucessivos após ter sido criado o hábito de uso desejado, ou seja, após o Onboarding.
Dividindo a jornada do usuário entre antes e depois de estabelecido o hábito de uso, o que encontramos no segundo estágio, o chamado Ongoing, são ciclos que, independente da perfeita utilização do produto, devem ser respeitados para conseguirmos corrigir qualquer desvio de percurso.
São exemplos no caso da escovação: a troca da escova de dentes em até 3 meses de uso; e a consulta ao dentista ao menos 1 vez por ano.
Já os especialistas em redução de peso nos mostram que, tendo adotado exercícios em sua rotina semanal, aqueles que desejam emagrecer esbarram com a chamada termogênese adaptativa: o corpo passa a gastar menos calorias a medida que se adapta a uma redução brusca da diferença entre a geração e o gasto de energia – com mais exercícios e com a revisão da alimentação.
Para que o paciente siga perdendo peso, aconselham então uma mudança nas práticas de alimentação e exercícios vigentes, mantido o hábito inicial.
Podemos encarar este momento como o início de um novo ciclo, iniciado com a transformação do caso de uso e o acúmulo de maturidade para o uso do produto academia.
Já em uma plataforma social como Facebook, Instagram ou LinkedIn, se um primeiro caso de uso é a conexão com pares e a criação de uma identidade digital, um segundo caso de uso a ser trabalhado poderá ser a criação de conteúdo próprio para fins comerciais, por exemplo, o que levará o usuário a uma nova etapa em sua jornada de uso.
Diferentes medidas para diferentes questões
Um olhar gerencial sobre os usuários de um determinado produto nos permite analisar diferentes aspectos relacionados à adoção:
Qual a receita estamos conseguindo criar com o produto? – métricas como a receita recorrente mensal ou anual (MRR ou ARR) nos mostram qual o resultado financeiro a empresa conseguiu atingir, dada uma estratégia de retenção passada.
Como deixo transparecer, estas são métricas que apenas refletem o que aconteceu no passado, em termos de uso; e não nos permitem atuar de forma proativa sobre a retenção de clientes.
Quantos usuários estão usando meu produto de forma correta? – Esta é uma pergunta que respondemos ao analisar a saúde da base de clientes de uma organização. Fazemos isso, considerando dois componentes:
Breadth of use, ou a quantidade de usuários que completam uma ação-chave (core action, ou escovar corretamente os dentes, ou seja, usando pasta de dentes, escova e fio dental); e
Depth of use, ou a frequência ideal de uso, como mostrado anteriormente, 2 vezes ao dia.
Esta métrica composta (quantos usuários escovam corretamente os dentes ao menos 2 vezes ao dia) encerra o objetivo de uma estratégia de Onboarding de clientes, que se inicia com os primeiros contatos do usuário com o produto; e finaliza, como dissemos, com a criação de um hábito de uso, com a adoção do produto rotineiramente (seja a rotina diária, semanal, quinzenal, etc).
É sempre oportuno lembrar que a métrica de hábito a ser gerenciada guarda relação direta com a solução de um problema do usuário, independente de sua urgência para ele; e sem partirmos desta perspectiva, criamos estratégias de adoção pela metade, correndo o risco de não impactarmos a retenção de clientes como desejado.
Estamos oferecendo o melhor escopo de serviço possível aos usuários? – Algumas são as métricas que podem nos ajudar aqui, das quais destaco o Time to Value (TtV), ou seja, quanto tempo é tomado para levarmos um novo usuário ao que é de valor para ele, seja a um momento de AHA! ou ao momento do hábito.
Desta perspectiva, do primeiro ciclo de uso, chegamos a métricas de ativação como:
- usou escova de dentes infantil até o terceiro mês do aparecimento dos primeiros molares;
- retornou à academia após o primeiro treino de experiência, em até 3 dias;
- adicionou 10 amigos em até 7 dias de uso (esta é uma conhecida métrica de ativação usada no passado pelo Facebook); etc.
Em resumo, métricas de resultados nos mostram o reflexo financeiro do serviço oferecido no passado aos nossos clientes.
Já as métricas de adoção ou métricas de hábito, são de forma: fez ação x nos últimos y dias; e nos permitem separar a base de usuários entre adotados e não-adotados; engajados e desengajados.
Elas diferem de métricas de ativação, que medem a qualidade do serviço de Onboarding oferecido e tem como forma: fez ação x até o dia y° de uso.
Sim, existem excessos em estratégias de adoção!
Por fim, uma etapa avançada da construção de uma estratégia de Onboarding de clientes nos leva a questionar o que fazer em casos de excesso de uso. Vejam:
Se as bactérias maléficas a nosso organismo levam cerca de 24h para se formarem em nossas bocas, o que teremos ao escovar os dentes 4, 5, 6 vezes ao dia nada mais é do que um efeito negativo sobre os esmaltes dos dentes, dizem os especialistas.
Algo parecido vem sendo estudado por algumas plataformas sociais, que já preveem desestimular o uso de seus aplicativos quando este se torna frequente demais. O Instagram, como exemplo, oferece um Dashboard de tendência de uso, para que seus usuários acompanhem quantas horas estão sendo gastas por dia.
Já existe inclusive uma escala de vício para o uso do Facebook. O BFAS (ou Bergen Facebook Addiction Scale) é fruto dos estudos de uma equipe da Universidade Norueguesa de Bergen, entre 2011/12; e lista tendências como: o uso o Facebook para esquecer problemas pessoais e tentativas mal-sucedidas de reduzir o uso da plataforma.
Um certo grau de vício digital parece ser um elemento a que todos nós estamos sujeitos na era pós-internet.
E falando de atualidades, vale checar o novo episódio Smithereens, recém-lançado pela série Black Mirror, que trata exatamente disto: como incorporamos aplicativos como Uber e Facebook em nossas rotinas, chegando a efeitos negativos sem volta.